Bis is idem no ajuste a valor justo: migração do lucro real para o presumido

Cláudio Henrique Resende Batista (*) 

O ajuste a valor justo (AVJ) foi introduzido na legislação brasileira seguindo a tendência de harmonização das normas contábeis de acordo com os padrões internacionais adotados, estando previsto no artigo 183 da Lei nº 6.404/76, com as alterações promovidas pela Lei nº 11.638/2007. 

Segundo o CPC 46, a definição de valor justo é ”o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data da mensuração”. Trata-se, portanto, de uma estimativa do valor de venda do ativo. 

As normas contábeis têm determinado a realização do AVJ em alguns casos, como por exemplo no caso de florestas em uma atividade de reflorestamento (“ativo biológico”), ou ainda nos casos das “Propriedades para Investimento”, que representam ativos imobiliários utilizados para gerar renda ou ganho de capital em empresas atuantes no ramo imobiliário. 

No caso do ativo biológico, suas formas de reconhecimento e mensuração foram estabelecidas pelo CPC 29, sendo que o seu item 26 determina que a contrapartida do reconhecimento de tal valor justo deve ser realizado em conta de resultado. Sistemática similar pode ser vista no item 35 do CPC 28, para o caso das “Propriedades para Investimento”. 

O ganho de AVJ, portanto, gera lucro contábil, cujo conceito tem relevância para fins de apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). 

Considerando que o valor justo conferido ao ativo não demonstra realização de ganho ou perda por tratar-se de renda potencial, e não efetiva, surgiu então a necessidade de neutralização dos efeitos do AVJ, o que foi feito pela Lei nº 12.973/2014. 

A referida Lei não só identificou os possíveis impactos fiscais decorrentes da contabilização do AVJ, como tratou de neutralizar os seus efeitos, desde que atendidas determinadas condições. 

O seu artigo 13 determina que o ganho decorrente da avaliação de ativo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real, desde que o respectivo aumento no valor do ativo seja demonstrado contabilmente em subconta vinculada ao ativo. O ganho só será incluído na determinação do lucro real quando efetivamente realizado: 

“Artigo 13. O ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real desde que o respectivo aumento no valor do ativo ou a redução no valor do passivo seja evidenciado contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo. 
§1º O ganho evidenciado por meio da subconta de que trata o caput será computado na determinação do lucro real à medida que o ativo for realizado, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa, ou quando o passivo for liquidado ou baixado.” 

Significa dizer que os ganhos de AVJ não irão compor a base de cálculo do IRPJ e da CSLL enquanto não forem efetivamente realizados, desde que sejam controlados em subcontas do ativo. 

Por meio desse controle, a Receita Federal tem a possibilidade de rastrear a efetiva realização do AVJ. 

Até aqui é viável conviver com essa sistemática, sendo possível concluir que a metodologia criada pela Receita Federal cria um ambiente receptível para a dinâmica contábil. Os problemas, contudo, começam a aparecer a partir do momento seguinte. 

O que tem chamado a atenção é que, em determinados casos, mesmo a empresa tendo o intuito de manter o controle em subcontas do ativo, há intenção do fisco de buscar a tributação do AVJ como se o ativo estivesse sendo “realizado”. 

A problemática aqui se inicia quando a empresa que possui o AVJ controlado em subconta planeja migrar do Lucro Real para o Lucro Presumido. 

O artigo 54 da Lei nº 9.430/1996 determina que seja realizada a adição à base de cálculo do IRPJ e da CSLL, dos valores cuja tributação fora diferida no lucro real, no primeiro período de apuração em que a pessoa jurídica se encontrar sujeita ao lucro presumido: 

“Artigo 54. A pessoa jurídica que, até o ano-calendário anterior, houver sido tributada com base no lucro real deverá adicionar à base de cálculo do imposto de renda, correspondente ao primeiro período de apuração no qual houver optado pela tributação com base no lucro presumido ou for tributada com base no lucro arbitrado, os saldos dos valores cuja tributação havia diferido, independentemente da necessidade de controle no livro de que trata o inciso I do caput do artigo 8º do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977.” 

A Receita Federal cuidou de vincular a regra acima à sistemática do AVJ, conforme se verifica no inciso II do parágrafo único do artigo 219 da Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017: 

“Artigo 219. A pessoa jurídica que, até o ano-calendário anterior, houver sido tributada com base no lucro real deverá adicionar às bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, correspondentes ao 1º (primeiro) período de apuração no qual houver optado pela tributação com base no lucro presumido, os saldos dos valores cuja tributação havia diferido, independentemente da necessidade de controle na parte B do e Lalur e do e-Lacs. 
Parágrafo único. O disposto no caput aplica-se inclusive aos valores controlados por meio de subcontas referentes: (…) 
II – à avaliação de ativos ou passivos com base no valor justo de que tratam os artigos 97 a 101.” 

Aqui já se verifica a intenção infralegal de tributar o AVJ na transição de regime, do Lucro Real para o Lucro Presumido. 

Nota-se clara divergência entre a Instrução Normativa nº 1.700/2017 e a Lei nº 9.430/1996, dado que essa não especifica que a tributação deve ocorrer para a sistemática do AVJ. 

Há aqui clara ofensa ao princípio da legalidade. A vinculação legal do encerramento do diferimento quando da saída do Lucro Real com a tributação do AVJ é totalmente necessária para que a tributação pudesse seguir conforme determinado na Instrução Normativa. 

Isto porque existe a sistemática legal já mencionada acima, prevista no artigo 13 da Lei nº 12.973/2014. 

De acordo com tal artigo, o AVJ só será tributado em duas situações: 1) à medida que o ativo for realizado, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa; ou 2) quando o AVJ deixar de ser evidenciado por meio de subconta do ativo. 

Ou seja, como a alteração do regime de tributação não configura qualquer das hipóteses legais previstas acima (até porque o controle em subcontas poderia continuar no lucro presumido), seria necessária Lei dispondo expressamente acerca de eventual tributação do AVJ quando da mudança do regime tributário. 

Nunca é demais reforçar a especialidade do artigo 13 da Lei nº 12.973/2014 em relação a regra geral do artigo 54 da Lei nº 9.430/1996. 

Caso a Instrução Normativa nº 1.700/2017 seja aplicada, haverá seguramente ofensa ao artigo 13 da Lei nº 12.973/2014. 

Isso sem mencionar a ofensa ao artigo 43 do CTN, dada a total ausência de acréscimo patrimonial, manifestação de riqueza, suscetível de tributação. 

Além da problemática legal acima, vale destacar o grave prejuízo financeiro gerado pela intenção da Receita Federal de tributar o AVJ na mudança do regime de tributação. 

Se o AVJ for tributado quando da migração para o Lucro Presumido, o custo de aquisição efetivo do ativo será majorado, “mercado a mercado” de acordo com o valor até então registrado de AVJ. 

Ocorre que, no Lucro Presumido, empresas que normalmente apuram o AVJ, como por exemplo uma reflorestadora de ”pinus”, embora registrem o ativo biológico em conta do ativo imobilizado por determinação contábil, fazem a reclassificação para o ativo circulante quando da venda, tributando-a como receita bruta e não como ganho de capital. 

Logo, o custo majorado pela tributação do AVJ na transição do regime em nada beneficia a empresa. 

Com isso é possível verificar que o ativo em si estaria sendo tributado em duas ocasiões: 1) pela suposta “realização” do AVJ na migração do regime; e 2) pela receita bruta apurada quando da alienação do ativo, em nítida situação de “bis in idem”, que em última análise ofende ao princípio da capacidade contributiva. 

Como mencionado pelo ministro Dias Toffoli na ADI 5.422, ”é certo, ademais, que, em regra, o imposto de renda só pode incidir uma única vez sobre a mesma realidade, sob pena de ocorrência de bis in idem vedado pelo sistema tributário”. 

Nesse contexto, a tributação do AVJ na migração do Lucro Real para o Lucro Presumido configura nítida ofensa ao artigo 13 da Lei nº 12.973/2014, bem como pode ensejar em bis in idem, onerando indevidamente os contribuintes, em ofensa aos princípios da capacidade contributiva e legalidade. 

Texto publicado pelo Conjur: https://www.conjur.com.br/2022-nov-20/claudio-batista-bis-in-idem-ajuste-valor-justo.

(*) Cláudio Henrique Resende Batista é advogado na Domingues Sociedade de Advogados e especialista em Direito Tributário. Formado em Ciências Contábeis e Direito, Pós-graduado em Direito Tributário e Mestre em Direito Empresarial e Cidadania.