Fim do voto de qualidade no CARF traz benefícios aos contribuintes

Por Cláudio Henrique Resende Batista

A Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, extinguiu o voto de qualidade, instrumento utilizado como forma de desempatar o resultado de julgamentos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

O tema é sensível pois o voto de qualidade tem o poder de manter autuações fiscais que, mesmo exaustivamente analisadas e julgadas por conselheiros de notório conhecimento jurídico, acabaram tendo o julgamento empatado, muitas vezes em virtude de uma legislação imprecisa, que suscita interpretações distintas.

Muito se ouviu falar que o voto de qualidade não é um problema no CARF, visto que é aplicado apenas em minoria dos casos, ou ainda, que já ocorreu de o voto de qualidade ser favorável ao contribuinte e que, então, não deveria jamais ser extinguido.

No entanto, para fins deste artigo, tomou-se como base alguns fatos que são verificados quando se milita no CARF: (i)  embora o voto de qualidade seja aplicado em minoria dos casos, normalmente são casos extremamente relevantes do ponto de vista jurídico e econômico; (ii) o voto de qualidade é sempre favorável ao fisco, salvo raríssimas exceções; (iii) especialmente após a operação Zelotes e notadamente na Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), parece haver uma presunção de má-fé do contribuinte quando se analisa a situação fática; (iv) notadamente na CSRF, a utilização do voto de qualidade tem ganhado força como instrumento de manutenção do crédito tributário.

Ao nos depararmos com uma situação onde a exigência fiscal é mantida pelo voto de qualidade, sempre bate aquele senso comum no coração dizendo que “o sistema tributário brasileiro não funciona adequadamente”, que “o custo no Brasil é muito alto”, que é “por esse e outros motivos que o Brasil não é visto como um bom país para se fazer negócios”, e assim por diante.

Entre tributaristas, há um consenso de que a situação atual merecia reparos, havendo diversas vertentes sendo debatidas que buscavam equalizar os efeitos decorrentes da aplicação do voto de qualidade. Dentre as quais, destaco a ideia que se tinha de que, em situações onde aplicado o voto de qualidade para o cancelamento de qualquer multa (penalidade), é dada a possibilidade de o contribuinte recorrer ao judiciário sem ter que oferecer garantia e sem sucumbência.

Contudo, a vinda da extinção do voto de qualidade, de forma até surpreendente e inesperada, transcende aspectos técnicos que poderiam ser utilizados para aperfeiçoar o procedimento, no sentido de maior justiça fiscal.

A mensagem agora é muito clara: na dúvida, o contribuinte ganha. É o mais nítido “in dubio pro contribuinte”. ​Trata-se de decisão política que trouxe nova regra para a mesa, sem considerar possíveis teses que buscavam equilibrar o peso dos interesses de ambas as partes.

A questão foi tratada de forma menos técnica do que se esperava. E isso, ao contrário do que muita gente defende, não é ruim.

Essa mudança de chave pode não ser perfeita se levarmos em conta os interesses das autoridades administrativas, mas ela seguramente contribuirá para o aperfeiçoamento do sistema tributário.

Seguramente, começa a ser instaurada a sensação de presunção de boa-fé do contribuinte, algo do interesse do Governo, já exposto no art. 2º, inc. II da Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica).

Ao invés de dizer que o Governo renunciou  bilhões de reais em arrecadação com essa medida, é preferível dizer que se optou por não arrecadar por meio de dúvidas, de imprecisão do sistema tributário brasileiro. O que se busca agora é aquilo que é “efetivamente” devido, afinal, não é normal um país que tem 50% do PIB em sede de contencioso fiscal.

Este ponto leva a outra reflexão, relacionada ao controle de legalidade do lançamento tributário. O que se verificava até então é que a complexidade do sistema tributário beneficiava o fisco. Quando se perde um processo administrativo por meio da aplicação do voto de qualidade, pode-se dizer que o controle de legalidade do lançamento tributário falhou, já que não houve consenso, tampouco orientação clara acerca do tema.

Com essa divergência na mão, cabia ao contribuinte transferir o problema ao poder judiciário, com todo ônus da posição de “réu”, pois, salvo exceções, a empresa dificilmente opta por pagar algo totalmente controvertido sem buscar todos os meios de defesa cabíveis.

Com o fim do voto de qualidade, essa situação muda e, na minha opinião, fortalece o CARF. Por mais que o controle de legalidade ainda possa ser considerado falho em situações de empate, ao menos a decisão do CARF será definitiva, não mais sendo necessário provocar o judiciário para resolver o problema. A redução da judicialização, sem dúvidas, é uma virtude desta alteração legislativa.

O esforço agora passa a ser o de deixar a legislação tributária mais clara, o que é um ganho para todos: auditores fiscais, contribuintes e sociedade.

Esforço esse que passa agora a ser mais ainda do interesse da Fazenda Nacional, caso queira realmente emplacar o seu entendimento em diversos casos controvertidos. Em outras palavras, retira-se a Fazenda Nacional da zona de conforto em que se encontrava.

Esse era um problema que se verificava nos casos em que aplicado o voto de qualidade: antes punia-se o contribuinte para depois ver o que acontece no âmbito do judiciário ou no legislativo. Agora, deve-se absolver o contribuinte e caso as autoridades administrativas queiram realmente estabelecer a cobrança pretendida, devem buscar os meios legislativos próprios para tanto, de forma transparente, para somente a partir daí concretizar a efetiva cobrança do crédito tributário.

Esta mudança pode melhorar o controle de legalidade por vias reflexas, na medida em que estimula a busca pelo aperfeiçoamento da legislação tributária.

Sem sombras de dúvidas, a Fazenda Nacional irá perceber que nem toda tese criada para exigência do crédito tributário é do interesse da sociedade. Basta citar como exemplo a questão do propósito negocial, que mesmo já tendo sido rechaçado pelo Congresso Nacional por mais de uma ocasião, vem sendo aplicado de forma cada vez mais voraz pelas autoridades administrativas.

Essa mudança de vertente aumenta a segurança jurídica e estabelece um cenário pro-business, com mais respeito à iniciativa privada.

A extinção do voto de qualidade ajuda resolver outro tema que gera grande indignação, que é a instauração de procedimentos criminais decorrentes de autuações fiscais mantidas pelo CARF por meio de voto de qualidade.

É ilógico a busca pela condenação por sonegação fiscal, entre outros tipos penais, quando o contribuinte adotou procedimento amplamente possível do ponto de vista jurídico, que sequer pôde ser resolvido definitivamente em sede de controle de legalidade do CARF, dada a aplicação do voto de qualidade.

Sobre o tema, a Procuradoria Geral da República (PGR) recentemente recomendou o veto em relação à extinção do voto de qualidade, alegando, entre outros, que a situação “pode  ocasionar  o  imediato  arquivamento  de  inúmeras Representações  Penais  para  fins  penais,  ante  a  desconstituição  dos  créditos  tributários subjacentes, impedindo, assim, o início ou desenvolvimento de investigações. (…) Em tais  casos,  alegar-se-á  que,  tratando-se  de  lei  que  repercute  na  esfera penal  de  forma  mais  benéfica,  deve  ser  aplicada  retroativamente,  comprometendo-se  importantes  investigações  e  processos  em  curso,  impedindo-se  que  tantas  outras  se iniciem a partir das representações encaminhadas pelas RFB.”

Com a sanção da Lei, a mensagem é clara no sentido de não haver crime quando o contribuinte, dentro dos limites legais, buscou a carga tributária mais otimizada possível e obteve êxito no CARF, ainda que em sede de empate.

É do interesse da sociedade que a PGR foque o seu tempo na busca pela condenação de pessoas que realmente representam um risco à sociedade, e não a empresários que otimizaram a carga tributária dentro dos limites legais, dada a legislação posta.

Sem querer de qualquer forma exaurir o tema, são estas as principais reflexões que julgo apropriadas nesse momento de virada de chave. E para reverenciar a iniciativa legislativa, vale parafrasear Peter Drucker: “Para ter um negócio de sucesso, alguém, algum dia, teve que tomar uma atitude de coragem.”

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