Tributação das offshores: Luxemburgo é uma opção viável para driblar o potencial fim do diferimento?

Recentemente foi publicada a Medida Provisória nº 1.171/2023, cujo objetivo é tributar anualmente o lucro auferido pelas sociedades offshores, aquelas situadas em locais que não tributam a renda e o patrimônio.

Com essa iniciativa, a União Federal busca acabar com a regra do diferimento que já perdura há anos, segundo a qual o lucro gerado em tais sociedades só é tributado quando da efetiva disponibilização aos sócios, pessoas físicas residentes no Brasil, ou seja, de acordo com o regime de caixa.

Caso a Medida Provisória nº 1.171/2023 seja convertida em Lei nos moldes em que inicialmente redigida, as pessoas físicas brasileiras terão que submeter os lucros das sociedades offshores à tributação em suas declarações de imposto de renda, com alíquotas de até 22,5%, independentemente da efetiva disponibilização, alterando a regra do regime de caixa para o regime de competência, encerrando-se com isso o diferimento “eterno”.

Nesse contexto, tem-se questionado se Luxemburgo, por oferecer veículos que podem se beneficiar da ausência de tributação de renda e patrimônio, por não se encontrar na lista de países considerados como paraíso fiscal ou regime fiscal privilegiado, expostos na IN n. 1.037/2010, e por possuir convenção firmada com o Brasil para evitar a dupla tributação (Decreto nº 85.051/1980), seria uma alternativa viável para sediar sociedades que possam evitar a tributação brasileira sobre os lucros auferidos no exterior, ou seja, esvaziando as pretensões da MP nº 1.171/2023.

De acordo com o artigo 7º do Decreto nº 85.051/1980, os lucros auferidos por uma empresa situada em Luxemburgo só são tributados nesse país. Tal regra é comum quando se fala em convenções para evitar a dupla tributação. Quando se aplica o artigo 7º, os lucros auferidos pela sociedade no exterior não podem ser oferecidos à tributação no Brasil.

Isso porque as convenções se sobrepõem a legislação local por força do art. 98 do CTN, formando verdadeiros bloqueios para evitar a dupla tributação.

O efeito prático seria auferir lucros no exterior não tributados em Luxemburgo, e deixar de submetê-los a tributação no Brasil em razão da convenção para evitar a dupla tributação. Não haveria sequer um cheque a ser emitido para a União Federal. Seria um cenário inclusive melhor do que o atual diferimento.

Contudo, como já diz o ditado, “the devil is in the details”. O raciocínio exposto acima é perfeito, se ele fosse aplicável ao caso de sociedades de investimento passivo com benefícios fiscais em Luxemburgo.

O art. 1º, 2 do Decreto nº 85.051/1980, exclui do escopo da convenção as sociedades residentes do Luxemburgo que gozem de tratamento fiscal especial, nos seguintes termos:

Artigo 1

Pessoas visadas

1. A presente Convenção se aplica às pessoas residentes de um ou de ambos os Estados Contratantes.

2. Fica entendido que a Convenção não se aplicará nem à renda nem ao capital das sociedades ” holdings ” residentes do Luxemburgo que gozem de tratamento fiscal especial em virtude da Iegislação luxemburguesa vigente, ou de qualquer outra lei similar que entre em vigor no Luxemburgo após a assinatura da Convenção, nem aos rendimentos que um residente do Brasil receba daquelas sociedades, nem às participações deste residente nas mencionadas sociedades.

Veja-se que a norma usa o termo “holding” entre aspas, adotando um conceito amplo, não classificando nenhuma situação específica. Ainda que se entenda que o termo “holding”se refira a holding company extinta em 2010, que motivou a retirada de Luxemburgo da lista de regime fiscal previlegiado, o que se verifica é que qualquer outra lei similar que entre em vigor no Luxemburgo, no sentido de dar tratamento fiscal diferenciado a uma sociedade, não poderá se beneficiar da convenção.

Com isso, conclui-se que, a sociedade sediada em Luxemburgo, tendo o tratamento fiscal especial do país, estará excetuada da convenção firmada com o Brasil.

Sociedades que não são submetidas à tributação da renda e do patrimônio no Luxemburgo, que não possuem atividade ativa, voltadas para o investidor privado auferir renda passiva, como a Sociedade de Gestão de Patrimônio Familiar (SPF), não podem se valer das regras da convenção.

A aplicação do art. 1º, 2 do Decreto nº 85.051/1980, independe de inclusão do Luxemburgo ou de qualquer das suas sociedades (como a SPF), como regime fiscal privilegiado nos termos da legislação brasileira. Como mencionado acima, nos termos do art. 98 do CTN, os tratados e convenções devem ser aplicados em detrimento da legislação interna. Não será por um detalhe na legislação brasileira que a convenção deixará de ser aplicada na sua íntegra (como tentou fazer o fisco brasileiro por diversas vezes), e também não será por um detalhe – a ausência de definição expressa na legislação brasileira acerca de um regime fiscal privilegiado do Luxemburgo -, que a convenção será aplicada de forma forçada, em contrariedade com o seu próprio texto.

As convenções são criadas para justamente evitar a dupla tributação, e não para assegurar a ausência de tributação.

Existem diversos precedentes corretamente favoráveis às empresas brasileiras que detêm operações no Luxemburgo, onde se aplicou a convenção para evitar a dupla tributação, como por exemplo o caso da Vale do Rio Doce (REsp 1.325.709 – STJ), Companhia Siderúrgica Nacional (Acórdão 9101-006.097 – CARF) e Banco Bradesco (Acórdão 1302-004.329 – CARF).

Mas nesses casos está claro que há uma “personalidade jurídica própria e distinta da controladora” (REsp 1.325.709), situação que é importante para fins de aplicação da convenção para evitar a dupla tributação.

Em outro caso envolvendo a empresa Usiminas, embora tenha sido desfavorável à empresa por prevalecer uma vertente excessivamente fiscalista, ficou claro não se tratar de uma estrutura fiscalmente privilegiada no Luxemburgo nos termos do art. 1º da Convenção, dado que havia pagamento de imposto em Luxemburgo, como mencionado no trecho abaixo: “Registre-se que a autoridade autuante deduziu do lançamento fiscal, com correção, os valores pagos pela Contribuinte a título de imposto de renda na Luxemburgo”. (Acórdão 9101-003.088).

Com isso, tratando-se de uma estrutura fiscalmente privilegiada no Luxemburgo, não será aplicada a convenção para evitar a dupla tributação, independentemente do que dispõe a legislação brasileira.

Não sendo aplicada a convenção, cumpre analisar a situação de Luxemburgo em relação às regras usuais.

Luxemburgo não se encontra na lista de países considerados como paraíso fiscal ou regime fiscal privilegiado, expostos na IN n. 1.037/2010, o que lhe coloca em uma situação diversa daquela inerente aos paraísos fiscais expressamente reconhecidos. Por isso, a sociedade ali residente não estaria sujeita a regra exposta no art. 4º, parágrafo 4º, inc. I da MP 1.171/2023, abaixo transcrito:

§ 4º  Sujeitam-se ao regime tributário deste artigo somente as controladas que se enquadrarem em uma ou mais das seguintes hipóteses:

I – estejam localizadas em país ou dependência com tributação favorecida ou sejam beneficiárias de regime fiscal privilegiado, de que tratam os art. 24 e art. 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996; ou

II – apurem renda ativa própria inferior a 80% (oitenta por cento) da renda total.

Embora isso seja indiferente para fins de aplicação ou não da convenção para evitar a dupla tributação, como mencionado acima, tal ponto é importante para verificar como se dará a aplicação da legislação brasileira.

Se fosse considerado apenas o inc. I acima, Luxemburgo não estaria sujeita às regras “anti-diferimento” expostas na MP 1.171/2023, independentemente da aplicação da convenção.

Contudo, a redação original da MP 1.171/2023 trouxe a regra insculpida no inc. II, segundo a qual as sociedades que “apurem renda ativa própria inferior a 80% (oitenta por cento) da renda total”, estarão sujeitas à tributação.

Tal regra visa assegurar que apenas as sociedades com atividade própria eminentemente ativa (> 80% da renda), que não estejam situadas em paraíso fiscal, não sejam impactadas pelas novas regras “anti-diferimento”.

Caso dita regra seja atendida, inclusive em Luxemburgo, não será aplicada a MP 1.171/2023.

De forma diversa, tratando-se de sociedade de investimento eminentemente passivo que goze de benefício fiscal em Luxemburgo, notadamente a ausência de tributação da renda e do patrimônio, será aplicada a sistemática trazida pela MP, caso venha ser aprovada.

Tratando-se de planejamento patrimonial, é importante que as regras do jogo sejam devidamente colocadas na mesa, de modo a evitar a equivocada tomada de decisão, contingências e custos desnecessários.

E nunca é demais repetir que, “quando a esmola é grande demais, até o santo desconfia”.

Artigo escrito por Cláudio Henrique Resende Batista, sócio da Domingues Sociedade de Advogados (DMGSA) e Mestre em Direito Empresarial.

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